terça-feira, 3 de agosto de 2010

Formigueiro da Amargura - Bia Taturana

“Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca,
sorri seus dentes de chumbo.
Solidão, palavra
Cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão.
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão”
(Paulinho da Viola – Dança da Solidão).



Durante o intervalo de nove segundos que Paulo esperava o metrô, o estudante de medicina analisa as situações diárias que observa dentro e fora do hospital. Com vinte e sete anos, Paulo não enxerga mais expectativas. Depois que passou a ter contato com os casos que lhe rodeia dez horas por dia nos plantões do hospital que completa sua residência, a sensibilidade de Paulo aumentou para com o modo no qual as pessoas conduziam suas vidas. Diariamente eram os mesmos sintomas: doenças respiratórias, infartos, aneurismas, dentre outras enfermidades que eram padronizadas pelos pacientes que circulavam pelo hospital. Algo havia de errado.
_ A senhora fuma?
_ Sim.
_ Humm. Quantos cigarros por dia?
_ Dois maços.
_ Não é muito?
_ Ah doutor, eu sou muito nervosa. Eu acordo às 5 da manhã, tomo o primeiro ônibus lá perto de casa, o ônibus bufando de gente durante duas horas e quarenta e cinco minutos pra atravessar até metade do caminho pro meu serviço. Depois, mais uma hora de van pra ta no serviço às 9. Saio às 20 horas do serviço, faço mais uma vez esse caminho, nem vejo direito meus filhos, vou pra cama morrendo de cansaço. Se eu não fumar meu cigarrinho, fico louca!
_Sei. E a senhora se alimenta direito?
_ Ah doutor, naquelas... eu tomo um café bem forte antes de sair de casa, que eu deixo pronto antes de me deitar. Eu precisava levar marmita de casa, mas não tenho coragem de preparar comida, tamanho o cansaço, então eu almoço dois salgado e um copo de refrigerante no serviço. Já acostumei. Meus filhos, graças a Deus, almoçam na escola lá do bairro. Eu sei que eu deveria me esforçar mais doutor, não por mim, mas pelos meus dois filhos, mas eu sou uma só doutor, fico morta de cansaço.
_ Você já tentou arrumar outro emprego?
_ Hahaha, não me faça rir doutor! Você acha que uma pessoa com a minha idade, sem estudo, semi-analfabeta, consegue emprego assim fácil? Emprego fácil ta assim pra vocês que têm diploma, é jovem, bonito. Gente velha, feia e ignorante o mercado gospe e pisa em cima.
_ Bom, nesse caso eu vou te passar esse antibiótico, mas você tem que tomá-lo após as refeições. É só retirá-lo no balcão.
_ Obrigada doutor.
Achava seu serviço uma indecência. Desde jovem queria exercer a profissão de médico, clínico geral. Filho da classe média trabalhadora católica, queria ser útil para alguma coisa nesse mundo. Diante desses diálogos que percorriam o seu cotidiano durante o trabalho, percebera a sua inutilidade diante à saúde do próximo, o que entendia ser completamente paradoxal, uma vez que as pessoas lhe confiavam suas vidas, era ele quem havia estudado anos para adquirir as informações exatas para solucionar aquelas doenças. Casos simples de serem resolvidos a partir de uma única forma: os pacientes teriam de mudar suas rotinas.
Era a única certeza que Paulo carregava dentro de si. Para que as pessoas solucionem suas enfermidades, é necessário que elas modifiquem seu cotidiano. Trabalhem menos, principalmente aquelas que exerciam funções repetitivas – a grande maioria – pratiquem atividades físicas que mais lhes agradassem para a liberação de serotonina e alimentação balenceada: cereais, legumes, frutas, verduras e alguma proteína animal. A receita era simples, mas como exercê-la diante de um cotidiano tão opressor? Para garantir todas essas necessidades básicas, a população era obrigada a se submeter a estas situações diárias, e ainda assim não garantiam o básico. Sentia-se podre por dentro, por darem tanto valor à sua profissão de merda, e se encontrar inerte diante dessas situações; além da certeza de se encontrar também enclausurado pelo sistema, já que a única coisa que lhe restava era contribuir para o enriquecimento das monstruosas farmacêuticas ao viciar as pessoas em drogas pesadas apenas para amenizar o problema, e não curá-lo.
Há meses que Paulo já não encontra mais estímulo. Tais situações lhe ocasionaram uma crise de depressão profunda, mas nem percebeu seu próprio problema, tal qual o restante da população. Minutos antes, se encontrava no interior do vagão com a mesma fisionomia dos demais: inexpressivos, movidos mecanicamente devido a mesma via sacra diária. Ao esperar o próximo trem na estação que faria baldiação para retornar ao serviço, num surto que o libertou do mecanismo medíocre que refletia naquele instante, Paulo se jogou na linha do metrô no momento em que o trem chegava para conduzir as formigas operárias paulistanas a seus postos, responsáveis na manutenção do vasto império presente na Avenida Paulista a na maior frota de helicópteros do mundo.
O suicídio de Paulo foi um bafafá na cidade, mas durou pouco tempo. Mesmo a imprensa mais sensacionalista foi terminantemente proibida de apresentar o caso aos seus telespectadores, devido a uma ética em omitir índices de suicídio – prevenção de surtos coletivos; ou gerar a ruína deste modelo de sociedade estratificada. Como não foi noticiado em lugar algum, os boatos logo cessaram, e Paulo se tornou mais um desses índices que fora arquivado, e obrigatoriamente esquecido.

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